No
século 18, a Inglaterra detinha o monopólio do comércio de escravos negros. Os
meios de transporte eram os mais cruéis imagináveis. Boa parte da população
inglesa tirava proveito desse comércio, e o povo, de maneira geral, aceitava a
escravidão. Havia aqueles que enriqueciam e, por isso, defendiam com veemência
o escravagismo. Mas Deus graciosamente ergueu uma geração de políticos cristãos
para lutar contra o que William Carey chamou de "maldito comércio de
escravos".
Preciosa graça
É
surpreendente que nenhum grande reformador da história ocidental seja tão pouco
conhecido como William Wilberforce. Ele nasceu numa família nobre da
Inglaterra, na cidade portuária de Hull, em Yorkshire, em 24 de agosto de 1759.
Naquela época, como hoje, a aristocracia vivia em meio a contradições: nela se
encontravam alguns dos grandes benfeitores da nação e alguns de seus maiores
corruptores. Wilberforce era fruto dessas ambigüidades.
Após
estudar em uma escola em Pocklington, foi aceito em 1776 no St. John's College,
na Universidade de Cambridge, onde decidiu dedicar-se à carreira política,
tendo sido eleito representante de seu povoado aos 21 anos de idade. Além de
repartir o dinheiro que possuía, mandou fazer um grande churrasco para todo o
vilarejo, o que lhe valeu um bom número de votantes. Aos 24 anos, já era um
político famoso por sua eloquência e acabou por ser eleito representante de
Yorkshire, o maior e mais importante condado da Inglaterra, chegando a Londres
cheio de popularidade.
Em
1784, ainda aos 24 anos de idade, partiu para uma viagem a Nice, na França, que
traria grande transformação em seu caráter. Levou consigo a mãe, Elizabeth, a
irmã Sally, uma amiga dela e Isaac Milner, seu antigo professor primário, e que
veio a se tornar presidente do Queen's College, na Universidade de Cambridge.
Na bagagem de Milner, Wilberforce viu uma cópia do livro de Philip Doddridge -
mais conhecido por ter escrito o famoso hino "Oh! Happy Day" [Oh! Dia
Feliz!] -, The Rise and Progress of Religion in the Soul [O começo e o
progresso da religião na alma]. Ele perguntou para seu amigo o que era aquilo e
recebeu a resposta: "Um dos melhores livros já escritos". Os dois
concordaram em lê-lo juntos na jornada.
A
leitura desse livro e das Escrituras, acompanhada de conversas com Milner,
levaram o jovem político à conversão. Ele declarou em seu diário, em fins de
outubro daquele ano:
Assim
que me compenetrei com seriedade, a profunda culpa e tenebrosa ingratidão de
minha vida pregressa vieram sobre mim com toda sua força, condenei-me por ter
perdido tempo precioso, oportunidades e talentos [...]. Não foi tanto o temor
da punição que me afetou, mas um senso de minha grande pecaminosidade por ter
negligenciado por tanto tempo as misericórdias indescritíveis de meu Deus e
Senhor. Eu me encho de tristeza. Duvido que algum ser humano tenha sofrido
tanto quanto eu sofri naqueles meses.
Wilberforce
começou um programa que durou toda sua vida, de separar os domingos e um
intervalo a cada manhã para se dedicar à oração e às leituras espirituais.
Uma longa e dura luta
Já
de volta a Londres, a vida de Wilberforce tomou novos rumos. Ele considerou
suas opções, inclusive o ministério cristão, mas foi convencido por John Newton
que Deus o queria permanecendo na política, em vez de entrar para o ministério.
"Espera e crê que o Senhor te levantou para o bem da nação", escreveu
Newton.
Depois
de muito pensar e orar, Wilberforce concluiu que Newton estava certo. Deus o
chamara para defender a liberdade dos oprimidos como parlamentar. "Minha
caminhada é de vida pública. Meu negócio está no mundo, e é necessário que eu
me misture nas assembleias dos homens ou deixe o cargo que a Providência parece
ter-me imposto", escreveu em seu diário, em 1788.
Outro
que o influenciou fortemente foi JohnWesley. Newton e Wesley tinham, além de
uma fé vibrante no evangelho, uma forte convicção de que não havia maior pecado
pesando sobre as costas do Império Britânico do que o terrível e abominável
tráfico de escravos, que Wesley batizara de "execrável vileza".
Bruce
Shelley diz que os ingleses entraram nesse comércio em 1562, quando Sir John
Hawkins pegou uma carga de escravos em Serra Leoa e a vendeu em São Domingos.
Então, depois que a monarquia foi restaurada em 1660, o rei Carlos II deu uma
concessão especial para uma companhia que levava 3 mil escravos por ano para as
Índias Orientais. A partir daí, o comércio cresceu e atingiu enormes
proporções. Em 1770, os navios ingleses transportavam mais da metade dos cem
mil escravos vindos da África Oriental. Muitos ingleses consideravam o tráfico
de escravos inseparavelmente ligado ao comércio e à segurança nacional da
Grã-Bretanha.
John
Wesley escreveu sua última carta a Wilberforce, em 24 de fevereiro de 1791,
seis dias antes de morrer, encorajando-o a executar o plano da abolição da
escravatura. Um parágrafo dessa carta diz o seguinte: "Oh! Não vos
desanimeis de fazer o bem. Ide avante, em nome de Deus, e na força do seu
poder, até que desapareça a escravidão americana, a mais vil que o sol já iluminou".
Foi
por conta dessas influências que Wilberforce decidiu dedicar toda a força de
sua juventude e todo o talento que tinha a um único objetivo que consumiria
toda sua vida: a abolição do tráfico negreiro. Algum tempo depois, num domingo,
28 de outubro de 1787, ele escreveu em seu diário as palavras que se tornaram
famosas: "O Deus todo-poderoso tem colocado sobre mim dois grandes
objetivos: a supressão do comércio escravocrata e a reforma dos costumes.
Uma
fonte de estímulo nessa luta foi sua participação ativa no chamado Grupo de
Clapham (Clapham Sect), constituído de pessoas ricas cujas residências ficavam
em Clapham, um elegante bairro localizado a 8 quilômetros de Londres, que
apoiava muitos líderes leigos na busca de uma reforma social, liderados por um
humilde ministro anglicano, John Venn. Como destacam Clouse, Pierard &
Yamauchi, o Grupo de Clapham foi, de longe, a mais importante expressão
anglicana na esfera da ação social. Esse grupo de leigos geralmente se reunia
para estudar a Bíblia, orar e dialogar na biblioteca oval de Henry Thornton, um
rico banqueiro que todo ano doava grande parte de seus rendimentos para a
filantropia.
Outros
que participavam do grupo eram: Charles Grant, presidente da Companhia das
Índias Orientais; James Stephens, cujo filho, chefe do Departamento Colonial,
auxiliou bastante os missionários nas colônias; John Shore, Lorde Teignmouth,
governador-geral da Índia e primeiro presidente da Sociedade Bíblica Britânica
e Estrangeira; Zachary Macauley, editor do Observador Cristão; Thomas Clarkson,
famoso líder abolicionista; a educadora Hannah More, além de outros líderes
evangélicos. Dentre várias atividades, eles ajudaram a fundar a colônia de
Serra Leoa, onde escravos libertos poderiam viver livres.
Clouse,
Pierard & Yamauchi dizem:
Este
grupo uniu-se numa intimidade e solidariedade incríveis, quase como uma grande
família. Eles se visitavam e moravam um na casa do outro, tanto em Clapham,
como na própria Londres e no campo. Ficaram conhecidos como 'os Santos' por
causa de seu fervor religioso e desejo de estabelecer a retidão no país. Vários
comentaristas observaram que eles planejavam e trabalhavam com um comitê que
estava sempre reunido em 'conselhos de gabinete' em suas residências pata
discutir o que precisava ser consertado e estratégias que poderiam usar para
alcançar seus objetivos.
Neste grupo, discutiam os erros e as injustiças de
seu país, e as batalhas que teriam de travar para estabelecer a justiça.
Os
membros do Grupo de Clapham demonstraram a diferença que um grupo de cristãos
pode fazer. Eles elaboraram 12 marcas que nortearam seu esforço pela reforma
social na Inglaterra do século 19:
1. Estabeleça objetivos claros e específicos.
2. Pesquise cuidadosamente para produzir uma
proposta realista e irrefutável.
3. Construa uma comunidade comprometida que apoie
uns aos outros. A batalha não pode ser vencida sozinha.
4. Não aceite retiradas como uma derrota final.
5. Comprometa-se a lutar de forma contínua, mesmo
que a luta demore décadas.
6. Mantenha o foco nas questões; não permita que os
ataques malignos de oponentes o distraiam ou provoquem resposta similar.
7. Demonstre empatia com a posição do oponente, de
forma que diálogo significativo aconteça.
8. Aceite ganhos parciais quando tudo o que é
desejado não puder ser obtido de uma só vez.
9. Cultive e apoie suas bases populares quando
outros, que estiverem no poder, se opuserem a seus projetos.
10. Transcenda à mentalidade simplista e
direcione-se às questões maiores, principalmente as que envolvem questões
éticas!
11. Trabalhe através de canais reconhecidos, sem
lançar mão de táticas sujas ou violentas.
12. Prossiga com senso de missão e convicção de que
Deus o guiará providencialmente se estiver verdadeiramente a seu serviço.
Em
1797, Wilberforce publicou um livro intitulado Practical View of Real
Christianity [Panorama prático do cristianismo verdadeiro], amplamente lido e
ainda publicado, que evidenciava o interesse evangélico na redenção como a
única força regeneradora, na justificação pela graça por meio da fé e na
leitura da Escritura em dependência ao Espírito Santo, ou seja, numa piedade
prática que redundasse em serviço relevante para a sociedade. Nessa obra, ele
disse sobre o cristianismo verdadeiro:
Eu
compreendo que a marca prática e essencial dos verdadeiros cristãos é a
seguinte: que os pecadores arrependidos, confiando na promessa de serem aceitos
[por Deus], mediante o Redentor, têm renunciado e abjurado todos os outros
senhores, e têm de maneira integral se devotado a Deus. Agora, seu propósito
determinado é se dedicar integralmente ao justo serviço do legítimo Soberano.
Eles não mais pertencem a si mesmos: todas as faculdades físicas e mentais, sua
herança, sua essência, sua autoridade, seu tempo, sua influência, tudo o que
desconsideram como sendo seus [...] devem ser consagrados em honra a Deus e
empregados a seu serviço.
E
sobre o poder e o direito:
Eu
devo confessar [...] que minhas próprias [e sólidas] esperanças pelo bem-estar
do meu país não depende de seus navios e exércitos, nem da sabedoria de seus
governantes, ou ainda do espírito de seu povo, mas sim da [capacidade de]
persuasão de todos aqueles que amam e obedecem ao evangelho de Cristo.
No tempo de Deus
Wilberforce
e seus amigos do Grupo de Clapham também ajudaram a fundar escolas cristãs para
os pobres, a reformar as prisões, a combater a pornografia, a realizar missões
cristãs no estrangeiro e a batalhar pela liberdade religiosa. Mas Wilberforce
acabou por se tornar mais conhecido por seu compromisso incansável pela
abolição de escravidão e do comércio de escravos.
Sua
luta começou por volta de 1787 - ele já era parlamentar desde 1780. Haviam
pedido a Wilberforce que propusesse a abolição do comércio de escravos, embora
quase todos os ingleses achassem a escravidão necessária, ainda que
desagradável, e que a ruína econômica certamente viria ao acabar com a
escravidão. Apenas uns poucos achavam o comércio de escravos errado. A pesquisa
de Wilberforce o pressionou até conclusões dolorosamente claras. "Tão
enorme, tão terrível, tão irremediável aparentou a maldade desse comércio que
minha mente ficou inteiramente decidida em favor da abolição", disse ele à
Casa dos Comuns. "Sejam quais forem as consequências, deste momento em
diante estou resolvido que não descansarei até efetuar sua abolição."
Wilberforce falou primeiramente sobre o comércio de escravos na Casa de Câmara
dos Comuns em 1788, num discurso de três horas e meia, que concluiu dizendo:
"Senhor, quando nós pensamos na eternidade e em suas futuras consequências
sobre toda conduta humana, se existe esta vida, o que esta fará a qualquer
homem que contradisser as ordens de sua consciência e os princípios da justiça
e da lei de Deus!". Sua luta custou-lhe dezoito anos de trabalho
incansável.
Os
feitos de Wilberforce foram realizados em meio a tremendos desafios. Ele era um
homem de constituição fraca e com uma fé desprezada. Quanto à tarefa, enquanto
a prática da escravatura era quase universalmente aceita, o comércio de
escravos era tão importante para a economia do Império Britânico quanto é a
indústria de armamentos para os Estados Unidos hoje. Quanto à sua oposição,
incluía poderosos interesses mercantis e coloniais e personalidades como o
famoso Almirante Horacio Nelson e a maior parte da família real. E quanto à sua
perseverança, Wilberforce continuou incansavelmente, anos a fio, antes de
alcançar seu alvo. Sempre desprezado, ele foi duas vezes assaltado e surrado.
Certa vez, um amigo lhe escreveu, dizendo-lhe que, do jeito que as coisas
andavam, "eu espero ouvir dizer que foste carbonizado por algum dono de
fazenda das Índias Ocidentais, feito churrasco por mercadores africanos e
comido por capitães da Guiné, mas não desanime - eu escreverei o seu
epitáfio!"
O
comércio de escravos foi finalmente abolido em 25 de março de 1806. Quando a
lei foi aprovada, todo o Parlamento se pôs de pé e aplaudiu Wilberforce por
vários minutos, enquanto ele, já desgastado pelos anos, chorava com o rosto
entre as mãos.
Ele
continuou a campanha contra a escravidão em todos os territórios britânicos, e o
voto crucial da famosa Lei de Emancipação chegou quatro dias antes de sua
morte, em 29 de julho de 1833.
Por
conta da decisão parlamentar, poderosa como era e não querendo ser lesada em
seus interesses, a Grã-Bretanha declarou ao mundo que nem ela nem ninguém mais
poderia traficar escravos. Além disso, tornou-se a guardiã dos mares. Logo,
Portugal e Bélgica, as duas nações rivais, tiveram também de parar com o
tráfico, por força do poderio naval inglês.
Um
ano depois da morte de Wilberforce, em julho de 1834, 800 mil escravos,
principalmente na Índia Ocidental britânica, foram libertos. Em pouco tempo, a
maior parte dos países ocidentais aboliria a escravidão em definitivo.
Assista ao filme “Jornada Pela Liberdade”.
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