Aulas de mediocridade
A velha história: a gente pensa que
viu tudo, mas novamente um desses choques que me fazem pensar num engano, não
pode ser, vou ler de novo. Era verdade: um projeto já em execução, financiado
em parte pelo Ministério da Cultura, banca a edição de centenas de milhares de
livros de autores clássicos brasileiros "facilitados", começando com
Machado de Assis. Facilitados para quem? Para o leitor ignorante, é claro,
despossuído da inteligência necessária ou da necessária educação para ler esse
autor, o primeiro a sofrer tão abominável mutilação. Troca de vocábulos e
talvez frases inteiras, em suma, reescrevem Machado; portanto, o que for lido
não será ele. Inútil trabalho, gasto inútil, logro do leitor, o livro não será
de Machado de Assis.
Volto, pois, ao meu velho tema: a
mediocrização paulatina e permanente de tantos setores do Brasil. Desta vez, em
lugar de elevar o nível do nosso ensino, em todos os graus, há um triste
esforço para reduzir tudo ao mais elementar, ao mais primário. Alunos saem das
primeiras séries muitas vezes sem saber ler nem escrever direito; assim passam
pelo 2º grau, em que é preciso esforço para ser reprovado. Acho que nem se usa
mais esse termo, para não traumatizar os alunos com bobagens como essa; aliás,
eliminam-se punições inclusive nos casos mais sérios, reprovações, até mesmo
notas. Tudo transcorre de mansinho, com alunos iludidos, pais e professores
perplexos, e a ideia de que a vida deve ser um jardim de infância.
Alguns chegam à universidade via
Enem, sempre confuso, via cotas de toda sorte que considero humilhantes e
irreais, pois reforçam o preconceito: você tem preferência não por ter
estudado, por ter preparo, mas por sua raça, sua origem, seu nível econômico.
Por ter lido um falso autor brasileiro clássico?
Jovens universitários não conhecem
ortografia, e pior: não conseguem exprimir com simplicidade e correção seus
pensamentos porque em geral nem os têm. Desabituados à argumentação e ao
questionamento, ao esforço por aprender, a horas e horas em cima dos livros
(desabituados de livros, aliás) ou de reais pesquisas na internet quando têm
computador (não se iludam quanto à posse generalizada de notebooks), jovens
entram e saem da universidade com quase igual despreparo. Os bons alunos se
queixam do baixo nível, da falta de professores, de material, de instalações
adequadas. Os outros, sem culpa alguma pelos erros do sistema, acabam exercendo
sua profissão do jeito que conseguem. Doentes mal diagnosticados e erradamente
tratados, construções rachadas e erodidas, estradas mal asfaltadas, pesquisas
frustradas, e frustração dos outros que, por esforço e muito estudo, procuram
níveis de excelência para si e para o país.
É impossível uma pessoa simples
ouvir e apreciar um concerto de música clássica? Engano. Pode não conhecer a
biografia do compositor, o uso dos instrumentos, a elaboração das partituras,
mas a música a atingirá porque os simples têm emoções, delicadeza, sentimento e
gosto pelo belo. Pessoas simples, ou jovens, até crianças, conseguem de maneira
surpreendente curtir bons quadros e esculturas, mesmo sem ser especialistas em
artes. Não é preciso conhecer teoria para enxergar beleza, harmonia ou qualquer
sugestão de um objeto de arte: a arte pode ser democrática sem ser distorcida
ou facilitada. Para ler um romance de Machado, não é preciso ser um gênio nem é
necessário traduzir os termos ou frases mais difíceis para um linguajar
coloquial: basta colocar no fim do livro, como já vi ser feito, um conjunto de
verbetes explicando os termos menos usados, como num minúsculo dicionário. O
leitor aprende, cresce, instrui-se, e, mesmo que não vire leitor dos clássicos,
terá uma ideia do que o país já produziu nesse sentido.
Mas não damos ao nosso aluno esse
privilégio: se for possível, se tal projeto já aprovado e financiado pelo
Ministério da Cultura se afirmar, o culto à mediocridade, que impera, vai ter
feito mais um gol de vitória. Mas, afinal, é a Copa.
Lya Luft é
escritora, colunista da Revista Veja. O artigo acima foi publicado na Revista
Veja, edição 2374, de 21 de maio de 2014
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